terça-feira, 18 de março de 2008

Equívocos Talentosos (I)

Como músico e professor de música é impossível não ouvir alguém falando sobre ‘talento’. Uns acham que talento é uma inspiração pseudo-divina que alguns eleitos recebem antes de encarnarem – ou algo que o valha – , enquanto outros acham que é conversa fiada para alguns se pretenderem mais distintos que outros. E confesso que já transitei entre as duas posições, até perceber que essa antinomia repousa num pressuposto metafísico (dubitável).
Pensemos na oposição então.
Talento existe. Para a maioria das pessoas isto quer dizer que, alguns possuem, em sua essência metafísica, no céu ou no plano ideal, a aptidão inata para uma determinada arte, independente das condições materiais de suas vidas. Aquela coisa de ‘nasceu para ser aquilo’. Não precisa ser nenhum grande pensador para perceber qual o fundamento disso: o pressuposto moderno-cristão de que há uma cisão entre homem e mundo, que o homem tem lá sua essência fora do mundo e que por isso mesmo é, a priori, inteligente, moral, bom, etc.
Talento não existe. Isto quer dizer, para a maior parte então que, basta querer para poder. Aptidões passam a ser frutos da vontade humana, que escolhe, quando bem quer, independente das condições materiais da vida, o que quer ser. Aquela coisa tradicional de “querer é poder”. Fácil também encontrar os pressupostos fundamentais: os homens são, essencialmente, iguais, com possibilidades iguais para quaisquer artes. O que já pode nos mostrar um estranho encontro nesta antinomia: ambas as proposições repousam sobre a mesma compreensão de mundo moderna. Afinal, ‘igualdade’ é um preceito cristão que ganhou voz ‘de verdade’ quando se tornou burguês em 1789. Acredito que, de maneira mais ampla, o mais importante do que é comum em ambas as posições é a (estranha) crença de que somos ou deixamos de ser alguma coisa de forma independente das condições materiais de perpetuação da vida, ou, como dizem na Academia desde Kant pelo menos, a priori.
A contradição pode dar sinais de dissolução se a questionarmos diretamente em seus fundamentos. E se não estivermos prontos no céu metafísico antes de ‘encarnarmos’? E se, ao contrário do que muitos ainda acreditam, nós formos apenas aquilo que fazemos e não aquilo que representamos em nossa maquinaria intelectual? E se, ao invés da interpretação metafísica tradicional, essência e aparência forem coisas intimamente conectadas e não abortadas ao modo de uma dualidade excludente? Bem, essa via especulativa tem sido fortemente trilhada por alguns pensadores, desde os dois grandes golpes aplicados à metafísica: o de Marx e o de Nietzsche. Também o velho Husserl e seus célebres seguidores fenomenólogos, como Heidegger e Sartre para citar apenas dois dos mais famosos. A célebre frase, muito repetida e pouco pensada, “a existência precede a essência”, que norteou o pensamento de Sartre, tem exatamente esse sentido. Como pensaremos agora que pretendemos esfacelar a oposição sem nos perdermos num jogo de palavras desprovido de sentido?
Talento existe? Sim. Observadas as condições materiais da vida e o espectro de possibilidades que se apresentam. Muitas possibilidades estão abertas para uns e fechadas para outros. E vice-versa. Pretender um salto reflexivo “sem a prioris” quer dizer que não há uma cartilha existencial. É preciso que cada um cuide bem dos seus “possíveis mais próprios”. O discernimento para escolhê-los também não está dado. Talento é o reconhecimento e a assunção de uma possibilidade própria, levada às últimas conseqüências. As pessoas não são iguais. Porque a vida não se repete como numa fórmula matemática. A igualdade pregada é burguesa e seu foco é estritamente capitalístico. É preciso que as pessoas queiram ser iguais, comprar as mesmas coisas, do mesmo modo, com o mesmo dinheiro. Quanto mais homogêneo, mais controlável. Mais sobre isso outro dia.

7 comentários:

Daniel do Valle Pretti disse...

Leo, como vc mesmo disse, essa dicotomia parece manter a discussao no mesmo solo, de fato, pouco se avança quando ficamos assumindo posições se o talento existe ou não. A questão é: o bom existe e só um tolo o negaria. No entanto, da onde provem o q é bom, assim como qualquer pergunta dignamente filosófica parece nos dar grande trabalho, como vc mesmo aponta.
Desconfio q como vc deu a entender "o mestre se faz no exercício" e q isso é excelência, talento. Enfim, esperando pela continuação!
Ps. cheguei em vitória e tamo precisando tomar uma gelada!
grande abraço

Unknown disse...

Pelo o que eu entendi você disse que o talento é "criado" a partir da prática, que ninguém nasce com ele, ele sedesinvolve. Eu gostaria muito de concordar com isso, mas isso seria como negar a existencia de gênios. Se a excelência é alcançada só por prática eu posso ser um gênio ou qualquer outro também pode, é só se esforçar para isso. Claro que o esforço conta muito, mas quem se esforça mais não é necessáriamente o melhor. Não tem como negar que tem pessoas que nascem com uma predisposição ou seja lá o que for. Eu nunca alcansarei o nivel de genialidade de um hendrix ou de um einsten, não interessa o quanto eu me esforçe. Essa parada de nascer com é muito vaga, eu sei, mas até hoje foi a melhor explicação que eu pude encontrar.

Leonardo Machado disse...

Floriano,
ao afirmar que o talento é "criado" a partir da prática vc ainda mantém a oposição. Seu exemplo do "gênio" ou "se eu QUISER posso ser" mantém tudo no nível inicial.

O desafio é pensar que nem é uma questão de querer e nem de uma habilidade inata. Aceita o desafio?
O que vc chama de "predisposição" com esse sotaque científico eu estou preferindo chamar de história e discernimento. É claro que existem 'aptidões', digamos assim, o que estou negando é que elas tenham alguma procedência divina ou transcendetal. A vida, a história, começa a nos determinar antes que tomemos "consciência" disso. Todo o ambiente no qual nascemos e crescemos já nos abre certas possibilidades e fecha outras. Minha tese é que o talento é o discernimento pra perceber quais são elas.

O problema do "gênio", como já dizia o velho Aristóteles antes mesmo deste termo ser cunhado é que sua 'genialidade' depende dos outros. Roy Buchanan é um guitarrista fantástico que foi ofuscado pelo Hendrix, só pra dar UM exemplo. Ou melhor, ofuscado pela ACEITAÇÃO do Hendrix. ;)

Se a tese for que pra ser gênio tem que ser um Einstein ou Hendrix cessam as revoluções, cessam as mudanças. O talento destes caras está exatamente no fato de que eles FORAM OS MELHORES QUE PODERIAM. Isso quer dizer que, existe um "melhor Floriano possível" que não é será o novo Einstein ou Hendrix. O discernimento pra saber o que é esse melhor é única e exclusivamente seu.

Espero que tenha melhorado. Comente novamente se precisar.

Abraço

Unknown disse...

Bom, dessa vez vou ser mais direta devido ao quase esgotamento do tema aqui exposto...afinal,(me valhendo de uma propaganda recentemente televisionada) exponho a minha opinião em uma frase simples, que ao mesmo tempo diz muito do que pra mim nada mais é do q a verdade nua e crua...: "Talento, ou você tem ou você não tem." Parece óbvio mas, guardadas as complexidades, é assim. E sinceramente, admito que ainda não me firmei quanto as "infinitas" formas de "conquistá-lo" (ainda que eu não o coloque num status de "prêmio" a ser alcançado, muito menos de um dom divino ou algo parecido, totalmente nato). Na verdade acredito que cada um conquiste ao longo da vida habilidades, que, por mais que exaustivamente praticadas, demandam aproveitamento pleno e inteligência (não a que se aprende na escola!) pra perceber a oportunidade certa e, consequentemente, o momento certo a serem expostas. Afinal me atrevo a afirmar que talento nada mais é do que uma convenção social daquilo que é "perceptível" e enquandrado em certos parâmetros pré-estabelecidos! (aliás concordo plenamente que "a sua 'genialidade' depende dos outros"). Chego a aliar, por fim, essa "posse" a outro fator determinante e, de certa forma, indiscutivelmente necessário: a Sorte! Ou seja, não basta possuir ou não o talento, mas sim usufruir ao máximo das oportunidades que lhe são ofertadas para que, num momento específico tal talento seja enfim reconhecido. Só que daí entro em outra discussão controversa...A Sorte existe? Ou seria Destino?...ou...?hiiii...é Léo, eu deixo esse abacaxi pra você descascar! ;)
De qq forma, parabéns pelo texto!
Bjs!

Fraga Ferri disse...

Seu texto é profundo e instigador, e mexe com um mito sedimentado que é o do "talento" ou da "genialidade" inata. Ver esses acontecimento como uma articulação da vida, mas que nunca se dariam se determinadas condições históricas,sociais e escolhas pessoais. Cito o exemplo de Hendrix, que era paraquedista e foi dispensado devido a um acidente. Depois perambulou como músico acompanhante de diversos cantores de blues e country, foi parar na Ingleterra e foi "descoberto" pelos ingleses. Olha as inúmeras articulações que se deram - e as escolhas mais numerosas que creio ele se viu obrigado a fazer - para que viesse à tona o "gênio" Hendrix. Como o Léo já disse com outras palavras, temos a cabeça "educada" prá ficar olhando prá cima e muita dificuldade em olhar pro chão e sentir a terra queimando nossas entranhas.
Gde texto. Parabéns.

Leandro L. Rodrigues disse...

O talento existe. Como ele é aproveitado, e quais são a´proveitados, em cada ser é difícil especificar. Quanto às causas do talento, gostaria de dizer que dentre os pensadores citados,senti a falta de Freud que a meu ver é essencial neste tipo de discussão.
Ótimo texto. Ótima questão.

Leonardo Machado disse...

Valeu, bróder!
Freud não apareceu por dois motivos: o primeiro é que eu realmente não tenho lá muita
"intimidade intelectual" com ele, e o segundo é que a psicanálise e a psicologia moderna repousam sobre algo que muito me perturba: a separação do homem do mundo, a cisão do real em res cogitans e res extensa, como diria o Cartesius. Mas, um dia dá tempo de estudar todo mundo de verdade, ô se dá.
Grande abaraço, welcome back.