domingo, 19 de julho de 2009

... mas a vida não é entendível.

De há muito decidimos que podemos prever, medir, calcular, racionalizar e antecipar nossas atitudes, de modo que o erro nada mais é do que uma desmedida, algo que poderia ser evitado se utilizássemos corretamente nossa razão. Desobedecemos os ‘mandamentos’ da razão por isso erramos, pecamos, perecemos, sofremos. E se assim padecemos, deixamos de ser eficientes, práticos, pragmáticos, funcionais.

Arriscarei aqui pensar – e não contar, medir, racionalizar – tal postura. Pensar aqui me diz: perguntar de modo a abrir um rasgo de questionamento radical o suficiente para causar-me estranheza, talvez e justamente, por estar próximo demais. O que nos é muito próximo pode deixar de ser visível, justamente por esta proximidade mesma. Tentar alcançar alguma distância em relação ao que nos é próximo: eis um dos modos pelos quais é possível caracterizar o pensamento. E de que modo então, se não se trata de uma maquinação de quantidades, poderei “distanciar-me” desta tão próxima proximidade — respondo: esta é justamente a característica essencial da pergunta. A pergunta tem por papel abrir aquilo que parece permanentemente fechado para que este mostre sua verdade – se a deixarmos ser a seu próprio modo, se não já transpusermos para ela aquilo que gostaríamos de ver ou ouvir dela. O não deixar acontecer a pergunta que abre a possibilidade de manifestação do verdadeiramente desconhecido – porque talvez muito próximo – caracterizarei como medo. Medo é a atitude que tomamos para protegermo-nos nas vizinhanças daquilo que não pode nos incomodar, de modo que vale um dito muito repetido na “cultura pop”: ignorance is bliss.

[“Mas onde é bobice qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta.”]

O modo de ser que repousa na tranquilidade da previsão, que descansa sobre o medido é o autômato, a máquina. A máquina não conhece a possibilidade do erro porque é única e exclusivamente ‘razão’. A máquina deixa de funcionar e neste momento, exatamente, perde sua razão de ser. Ela não erra: ou é ou não é. Parece-nos, portanto, que pretendemos nos comportar como máquinas quando pretendemos abstermo-nos do erro que nos retirará da tranquilidade monótona da repetição mecânica. O que nos impele a perguntarmos pela essência mesma do erro, e ver se, mesmo errando, ainda sabemos.

Nos ensinam que o erro se opõe ao “saber”. Se sabemos o quê e como devemos fazer, não podemos errar. Há algum tempo o “como” foi gradativamente destacado do “quê”, no assim chamado ‘método’. Em todas as esferas da vida, e não apenas nas ciências como podemos pensar apressadamente, se manifesta este acontecer do método, das regras, dos cânones. De modo que todas as relações estão garantidas pelos inúmeros códigos, legislações, direitos, deveres, que se emancipam da vida prática dos indivíduos em suas comunidades para repousarem exclusivamente na pura exterioridade, na pura positividade. Reinterpretá-los para “trazê-los de volta à vida” necessitaria inevitavelmente que perguntássemos por suas respectivas proveniência e legitimidade – mas acabamos de constatar que a pergunta traz a possibilidade do erro, e por isso, vem sendo sumariamente banida e, que se pese o paradoxo – ou melhor, o círculo – , é isto mesmo que garante a possibilidade da pura exterioridade legal dos ‘métodos’. Se for verdade que o erro se “opõe” ao “saber”, o avanço avassalador dos procedimentos tecnológicos hão de garantir-nos a extinção do erro – ou pelo menos, o colocarão no seu lugar de problema ‘individual’, de ‘incapacidade’ de ver o que já se sabe. O saber está acumulado no baú do tesouro científico, e está disponível a “qualquer um” a um distância de apenas dois cliques.

Resta-nos saber também se esta caracterização do saber é suficiente para expor sua profundidade. Parece-nos que entre um “não-saber” e um “saber” estamos passando por cima do movimento, muito próprio, do “vir-a-saber” – que apreendemos através da palavra “aprender”. Neste ponto, é evidente que me perguntarão: ‘aprendizagem’ não é o que acontece corriqueiramente nas escolas e universidades, de maneira sistemática e funcional? E novamente, o que está demasiado próximo só pode mostrar sua face se for provocado, perguntado. Se perguntem o que realmente se aprende – se é que se aprende – nesse acúmulo desenfreado de conteúdos para passar no vestibular ou se ter uma “profissão”. O quanto isto contribui para suas relações, para sua felicidade para além do puro e simples ‘entrar no mercado’ e ‘ganhar dinheiro’.

[“Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Quem julga já morreu.”]

Cometo aqui a ousadia de dizer que, em primeiro lugar, precisamos aprender a ver. Para isso, precisamos de tempo para que as coisas nos sejam verdadeiramente próximas, precisamos nos demorar mais nelas. Antes de “julgá-las” desde sua “utilidade” ou não, precisamos conhecê-las Em conhecendo-as, pode ser que, subitamente, nos conheçamos um pouco mais também. Conhecer não é o oposto de errar; antes, conhecer e errar se complementam, e conhecemos um somente na medida em que conhecemos o outro. Conhecemos um em função do outro. Quem sabe, podemos descobrir muitas outras possibilidades de sentido para o que já era tão sabido, tão óbvio, tão próximo. Se erramos fazendo a experiência de viver as coisas, bem.... acho que acertaremos em algumas coisas.

[“Muita coisa importante falta nome.”]

As citações entre colchetes, assim como o título deste post, são de Riobaldo, personagem de João Guimarães Rosa, em Grandes Sertões: Vereda.

[“O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”]

domingo, 14 de dezembro de 2008

Vamos rascunhando, então...

Novamente, alguns meses sem atualização, mas voltamos. De saída, gostei muito dessa de escrever o último texto de forma mais leve, mais genérica; vocês comentaram mais, participaram mais, fizeram o bolo crescer. O mais legal é que foram tantas ambiguidades deixadas no ar que dá pra ir destrinhcando em vários pedaços. Mas tudo tem que ter limite, pra não virar academicismo chato de novo. Até porque, “se me explico, me implico...”

[Parêntese enorme: os comentários a seguir não são direcionadas a ninguém especificamente e menos ainda estão intencionados para ‘diminiur’ alguém ou algo que o valha. Estou pegando os comentários feitos e utilizando-os genericamente, caricaturalmente para continuarmos – ou tentarmos continuar – a reflexão. Continuem comentando: é realmente importante!]

A tônica da maior parte dos comentários foi o individualismo. “Ah, é tanto individualismo que até o pensamento guardamos para nós mesmos”. O curioso é que foram ‘críticas’ ao individualismo feitas a partir do individualismo. Deixa eu tentar melhorar: só quem está dentro de alguma maneira desse individualismo pode mesmo achar que o pensamento é [ou pode mesmo ser] coisa ‘individual’. O que está sendo discutido aqui sob o nome ‘pensamento’ é algo um pouco maior do que nossas próprias elucubrações individuais (“vou ou não vou?”, “quero ou não quero?”, “dane-se, isso é problema meu” etc.) — ... por pensamento pretendemos discutir a possibilidade do pensamento, o fundamento do pensamento, isto é: história, povo, linguagem, ser. É uma questão de proveniência: de onde ganhamos nossas possibilidades? É claro que este individualismo é o primeiro modo pelo qual concebemos pensamento: desde Descartes identificamos a realidade com o que está na nossa cabeça – jurando que o ‘certo’ é o que está na nossa cabeça. E sempre que o mundo nos ‘decepciona’ voltamos mais e mais para dentro, até explodirmos em alguma depressão, stress ou qualquer treco desses. Minha questão aqui é inverter o individualismo perguntando: e de onde vem toda essa porcaria que tá na sua cabeça, hein? Get it? ;)

Outra coisa bacana que apareceu nos comentários foi o lance da utilidade/necessidade do pensamento. Esta questão só ganha seu sentido quando compreendemos o pensamento como ‘maquinação cerebral’ — novamente: pensamento aqui é o nosso modo de ser sempre. Todo e qualquer povo histórico, se era feito de gente, possuía produção intelectual, artística e etc. ‘Pensamento’ é a casa que moramos, a língua que falamos, a comida que comemos. Não somos como os bichos: todas as nossas atividades vêm acompanhadas do sentido que lhes damos. E não ‘damos’ sentido porque queremos ou escolhemos – somos assim: nos relacionamos com a realidade significando-a. Portanto, na minha opinião a coisa ficou simples: pensar é simplesmente [vir-a-]ser o que a gente é. Não pensar é virar escravo do moinho do capital: é virar número. Pensar não como apenas raciocínios complexíssimos neste blog que quase ninguém lê: NÃO. Pensar é escrever, ler, amar, produzir arte, construiur nossas vidas. Não pensar é achar que isso tudo nasceu pronto e que a gente não pode nunca fazer nada. Que ‘produção cultural’ é coisa de ‘elite’.

Falou-se também da ‘popularização’ da Filosofia. Aí entraram outros elementos. O mais grave é a identificação entre filosofia e pensamento. Quem está me acompanhando até agora já deve ter percebido que não concordo. Filosofia é um modo muito particular de acontecer o pensamento, e admitamos, um modo que parece ter um brilho especial. Mas é só. O pintor, o músico, o arquiteto, o engenheiro: todos podem ser pensadores. Todos podem ser ‘filósofos’ no sentido literal [e clichê] do termo: gente que gosta de pensar. E a ‘popularização’ é uma categoria que se irradia a partir de um lógica mercantil — este item, filosofia, pode ser ‘popularizado’, isto é, super-exposto de modo que consigamos ganhar alguma coi$a com isso? Eis a lógica da popularização.

Tá certo. Se tem alguém aí avidamente me acompanhando, já deve estar aborrecido querendo saber então que diabos eu compreendo por filosofia? Duas compreensões são cotidianamente e coerentemente possíveis:

a) Filosofia são as doutrinas, os conceitos, os pensamentos deixados escritos pelos caras que a história chamou de filósofos. Se é isso, aí sim: dá pra falar em Faculdade de Filosofia, em popularização da filosofia, etc, etc. É possível poder falar sobre a noção de ‘idéia’ em Platão, de ‘substância” em Aristóteles, de “vontade” em Nietzsche, etc. E pra isso vocês podem se poupar e comprar uns dois daqueles manuais de história da filosofia e pronto. Os esquemas estão prontinhos.

b) Filosofia é esse modo particular de pensar que podemos ‘aprender’ – ou talvez exercitar – pensando a partir dos textos dos caras. Pensando com os caras.

Filosofia que mereça esse nome e com letra maiúscula é, pra mim, uma ‘síntese’ entre essas duas compreensões. Não é necessário ser o expert em toda a história das idéias, mas é preciso conhecer algumas coisas pra se ‘entrar’ na filosofia. Mas não estou afirmando, repito, que a filosofia seja ‘a salvação’, a panacéia de qualquer coisa. Não.

O pensamento sim, é o caminho que considero possível. A filosofia é um modo através do qual eu me relaciono com o pensamento, assim como a música. É uma questão de que vocês tenham possibilidade de encontrar e assumir os seus modos de realização do pensamento. Eu realmente acredito nisso. Até a próxima porque já tá muito grande - mas ainda faltam algumas coisinhas.