De há muito decidimos que podemos prever, medir, calcular, racionalizar e antecipar nossas atitudes, de modo que o erro nada mais é do que uma desmedida, algo que poderia ser evitado se utilizássemos corretamente nossa razão. Desobedecemos os ‘mandamentos’ da razão por isso erramos, pecamos, perecemos, sofremos. E se assim padecemos, deixamos de ser eficientes, práticos, pragmáticos, funcionais.
Arriscarei aqui pensar – e não contar, medir, racionalizar – tal postura. Pensar aqui me diz: perguntar de modo a abrir um rasgo de questionamento radical o suficiente para causar-me estranheza, talvez e justamente, por estar próximo demais. O que nos é muito próximo pode deixar de ser visível, justamente por esta proximidade mesma. Tentar alcançar alguma distância em relação ao que nos é próximo: eis um dos modos pelos quais é possível caracterizar o pensamento. E de que modo então, se não se trata de uma maquinação de quantidades, poderei “distanciar-me” desta tão próxima proximidade — respondo: esta é justamente a característica essencial da pergunta. A pergunta tem por papel abrir aquilo que parece permanentemente fechado para que este mostre sua verdade – se a deixarmos ser a seu próprio modo, se não já transpusermos para ela aquilo que gostaríamos de ver ou ouvir dela. O não deixar acontecer a pergunta que abre a possibilidade de manifestação do verdadeiramente desconhecido – porque talvez muito próximo – caracterizarei como medo. Medo é a atitude que tomamos para protegermo-nos nas vizinhanças daquilo que não pode nos incomodar, de modo que vale um dito muito repetido na “cultura pop”: ignorance is bliss.
[“Mas onde é bobice qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta.”]
O modo de ser que repousa na tranquilidade da previsão, que descansa sobre o medido é o autômato, a máquina. A máquina não conhece a possibilidade do erro porque é única e exclusivamente ‘razão’. A máquina deixa de funcionar e neste momento, exatamente, perde sua razão de ser. Ela não erra: ou é ou não é. Parece-nos, portanto, que pretendemos nos comportar como máquinas quando pretendemos abstermo-nos do erro que nos retirará da tranquilidade monótona da repetição mecânica. O que nos impele a perguntarmos pela essência mesma do erro, e ver se, mesmo errando, ainda sabemos.
Nos ensinam que o erro se opõe ao “saber”. Se sabemos o quê e como devemos fazer, não podemos errar. Há algum tempo o “como” foi gradativamente destacado do “quê”, no assim chamado ‘método’. Em todas as esferas da vida, e não apenas nas ciências como podemos pensar apressadamente, se manifesta este acontecer do método, das regras, dos cânones. De modo que todas as relações estão garantidas pelos inúmeros códigos, legislações, direitos, deveres, que se emancipam da vida prática dos indivíduos em suas comunidades para repousarem exclusivamente na pura exterioridade, na pura positividade. Reinterpretá-los para “trazê-los de volta à vida” necessitaria inevitavelmente que perguntássemos por suas respectivas proveniência e legitimidade – mas acabamos de constatar que a pergunta traz a possibilidade do erro, e por isso, vem sendo sumariamente banida e, que se pese o paradoxo – ou melhor, o círculo – , é isto mesmo que garante a possibilidade da pura exterioridade legal dos ‘métodos’. Se for verdade que o erro se “opõe” ao “saber”, o avanço avassalador dos procedimentos tecnológicos hão de garantir-nos a extinção do erro – ou pelo menos, o colocarão no seu lugar de problema ‘individual’, de ‘incapacidade’ de ver o que já se sabe. O saber está acumulado no baú do tesouro científico, e está disponível a “qualquer um” a um distância de apenas dois cliques.
Resta-nos saber também se esta caracterização do saber é suficiente para expor sua profundidade. Parece-nos que entre um “não-saber” e um “saber” estamos passando por cima do movimento, muito próprio, do “vir-a-saber” – que apreendemos através da palavra “aprender”. Neste ponto, é evidente que me perguntarão: ‘aprendizagem’ não é o que acontece corriqueiramente nas escolas e universidades, de maneira sistemática e funcional? E novamente, o que está demasiado próximo só pode mostrar sua face se for provocado, perguntado. Se perguntem o que realmente se aprende – se é que se aprende – nesse acúmulo desenfreado de conteúdos para passar no vestibular ou se ter uma “profissão”. O quanto isto contribui para suas relações, para sua felicidade para além do puro e simples ‘entrar no mercado’ e ‘ganhar dinheiro’.
[“Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Quem julga já morreu.”]
Cometo aqui a ousadia de dizer que, em primeiro lugar, precisamos aprender a ver. Para isso, precisamos de tempo para que as coisas nos sejam verdadeiramente próximas, precisamos nos demorar mais nelas. Antes de “julgá-las” desde sua “utilidade” ou não, precisamos conhecê-las Em conhecendo-as, pode ser que, subitamente, nos conheçamos um pouco mais também. Conhecer não é o oposto de errar; antes, conhecer e errar se complementam, e conhecemos um somente na medida em que conhecemos o outro. Conhecemos um em função do outro. Quem sabe, podemos descobrir muitas outras possibilidades de sentido para o que já era tão sabido, tão óbvio, tão próximo. Se erramos fazendo a experiência de viver as coisas, bem.... acho que acertaremos em algumas coisas.
[“Muita coisa importante falta nome.”]
As citações entre colchetes, assim como o título deste post, são de Riobaldo, personagem de João Guimarães Rosa, em Grandes Sertões: Vereda.
[“O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”]
Arriscarei aqui pensar – e não contar, medir, racionalizar – tal postura. Pensar aqui me diz: perguntar de modo a abrir um rasgo de questionamento radical o suficiente para causar-me estranheza, talvez e justamente, por estar próximo demais. O que nos é muito próximo pode deixar de ser visível, justamente por esta proximidade mesma. Tentar alcançar alguma distância em relação ao que nos é próximo: eis um dos modos pelos quais é possível caracterizar o pensamento. E de que modo então, se não se trata de uma maquinação de quantidades, poderei “distanciar-me” desta tão próxima proximidade — respondo: esta é justamente a característica essencial da pergunta. A pergunta tem por papel abrir aquilo que parece permanentemente fechado para que este mostre sua verdade – se a deixarmos ser a seu próprio modo, se não já transpusermos para ela aquilo que gostaríamos de ver ou ouvir dela. O não deixar acontecer a pergunta que abre a possibilidade de manifestação do verdadeiramente desconhecido – porque talvez muito próximo – caracterizarei como medo. Medo é a atitude que tomamos para protegermo-nos nas vizinhanças daquilo que não pode nos incomodar, de modo que vale um dito muito repetido na “cultura pop”: ignorance is bliss.
[“Mas onde é bobice qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta.”]
O modo de ser que repousa na tranquilidade da previsão, que descansa sobre o medido é o autômato, a máquina. A máquina não conhece a possibilidade do erro porque é única e exclusivamente ‘razão’. A máquina deixa de funcionar e neste momento, exatamente, perde sua razão de ser. Ela não erra: ou é ou não é. Parece-nos, portanto, que pretendemos nos comportar como máquinas quando pretendemos abstermo-nos do erro que nos retirará da tranquilidade monótona da repetição mecânica. O que nos impele a perguntarmos pela essência mesma do erro, e ver se, mesmo errando, ainda sabemos.
Nos ensinam que o erro se opõe ao “saber”. Se sabemos o quê e como devemos fazer, não podemos errar. Há algum tempo o “como” foi gradativamente destacado do “quê”, no assim chamado ‘método’. Em todas as esferas da vida, e não apenas nas ciências como podemos pensar apressadamente, se manifesta este acontecer do método, das regras, dos cânones. De modo que todas as relações estão garantidas pelos inúmeros códigos, legislações, direitos, deveres, que se emancipam da vida prática dos indivíduos em suas comunidades para repousarem exclusivamente na pura exterioridade, na pura positividade. Reinterpretá-los para “trazê-los de volta à vida” necessitaria inevitavelmente que perguntássemos por suas respectivas proveniência e legitimidade – mas acabamos de constatar que a pergunta traz a possibilidade do erro, e por isso, vem sendo sumariamente banida e, que se pese o paradoxo – ou melhor, o círculo – , é isto mesmo que garante a possibilidade da pura exterioridade legal dos ‘métodos’. Se for verdade que o erro se “opõe” ao “saber”, o avanço avassalador dos procedimentos tecnológicos hão de garantir-nos a extinção do erro – ou pelo menos, o colocarão no seu lugar de problema ‘individual’, de ‘incapacidade’ de ver o que já se sabe. O saber está acumulado no baú do tesouro científico, e está disponível a “qualquer um” a um distância de apenas dois cliques.
Resta-nos saber também se esta caracterização do saber é suficiente para expor sua profundidade. Parece-nos que entre um “não-saber” e um “saber” estamos passando por cima do movimento, muito próprio, do “vir-a-saber” – que apreendemos através da palavra “aprender”. Neste ponto, é evidente que me perguntarão: ‘aprendizagem’ não é o que acontece corriqueiramente nas escolas e universidades, de maneira sistemática e funcional? E novamente, o que está demasiado próximo só pode mostrar sua face se for provocado, perguntado. Se perguntem o que realmente se aprende – se é que se aprende – nesse acúmulo desenfreado de conteúdos para passar no vestibular ou se ter uma “profissão”. O quanto isto contribui para suas relações, para sua felicidade para além do puro e simples ‘entrar no mercado’ e ‘ganhar dinheiro’.
[“Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Quem julga já morreu.”]
Cometo aqui a ousadia de dizer que, em primeiro lugar, precisamos aprender a ver. Para isso, precisamos de tempo para que as coisas nos sejam verdadeiramente próximas, precisamos nos demorar mais nelas. Antes de “julgá-las” desde sua “utilidade” ou não, precisamos conhecê-las Em conhecendo-as, pode ser que, subitamente, nos conheçamos um pouco mais também. Conhecer não é o oposto de errar; antes, conhecer e errar se complementam, e conhecemos um somente na medida em que conhecemos o outro. Conhecemos um em função do outro. Quem sabe, podemos descobrir muitas outras possibilidades de sentido para o que já era tão sabido, tão óbvio, tão próximo. Se erramos fazendo a experiência de viver as coisas, bem.... acho que acertaremos em algumas coisas.
[“Muita coisa importante falta nome.”]
As citações entre colchetes, assim como o título deste post, são de Riobaldo, personagem de João Guimarães Rosa, em Grandes Sertões: Vereda.
[“O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”]